Eu tenho déficit de atenção e nunca fui muito boa pra me concentrar. Isso significa que qualquer assobio ou qualquer grupo de pessoas falantes é capaz de tirar o foco do que eu tô fazendo, seja lá o que for. Os livros bons costumavam ser imunes à essa distração permanente, mas depois de um tempo nem eles mais eram capazes de me manter muito tempo concentrada em alguma coisa. Ler com música, nem pensar.
Era o que eu achava. Depois que comecei a trabalhar longe, precisei buscar alternativas ao tempo ocioso e lento que eu passo dentro dos trens. Um mp3 player parecia o mais sensato, e mesmo que no começo a música fosse um exercício fantástico de trilha sonora, onde eu adaptava tudo o que via àquilo que estava ouvindo, com o tempo fui percebendo que podia usar o tempo livre pra voltar a ler como eu lia antes, até os 14 anos: muito, profundamente, compulsivamente.
Mas o falatório do trem me atrapalhava. Não conseguia entrar no livro, como sempre fazia. Enfiar um fone mudo no ouvido não ia adiantar nada, então comecei a ouvir música enquanto lia. No começo, o que pareceu uma luta contra algo que era natural em mim se tornou a mais incrível das descobertas. Os livros começaram a ter trilha sonora. Era só saber colocar o disco certo no trecho certo e voilà, a experiência de imersão no texto era triplicada.
Vou usar como exemplo o livro que estou terminando hoje, Cem Anos de Solidão, pelo qual estou absolutamente encantada - mas desse encantamento, especificamente, falo outro dia. Calhou de eu estar com os CDs do Interpol, Our Love to Admire, e do Muse, o Black Holes and Revelations, no mp3, quando comecei a ler o livro.
Os dois casam de maneira singular com o romance, especialmente o Black Holes. Lembra do duo Dark Side of the Moon/Alice no País das Maravilhas? Se o CD durasse o tempo de leitura do livro eu diria que a relação é a mesma. Take a Bow, a primeira do disco, climatiza com perfeição o começo do romance, a parte onde José Arcádio, o patriarca, funda Macondo, e dá também, por si só, o tom de fantasia, de angústia e das loucuras que permeiam todo o livro.
Starlight serve pras passagens à noite, e perdão pelo óbvio mas juro que quando pensei nisso não pensei de primeira na relação com o nome da música. Até Supermassive Blackhole, a mais Britney Spears do CD (quase Toxic) fica muito bem nas cenas de amor louco que acontecem na história inteira, o tempo todo. Soldier’s Poem é a temperatura de Macondo no verão, no fim de tarde, antes de tudo: antes dos Buendías procriarem como loucos, lá quando as coisas não tinham nome mesmo.
Exo-Politics e Assassin (minhas duas preferidas) são, respectivamente, a juventude e as guerras do Coronel Aureliano. E Invincible é a canção da velhice e das predições dele.
City of Delusion é Macondo, depois do massacre, 3.500 pessoas mortas carregadas num trem de vinte vagões sem ninguém se dar conta disso, Hoodoo são os 3 anos de chuva (3?), e Knights of Cydonia também carrega uma aura que permeia toda história, o fantástico e mítico, o heróico e o covarde, as guerras, as bravuras e todo o ódio e o amor. Sem falar nas borboletas de Maurício Babilônia, que com o Muse estão sempre lá, naqueles teclados meio siderais.
Juro que a intenção não foi tentar ser poeta - e o texto está até meio confuso -, mas só tentei expressar o sabor da experiência de encontrar um livro que se encaixe com perfeição a um disco. Black Holes And Revelations, pra mim é tão Cem Anos de Solidão, que não consigo ouvir sem me lembrar do Coronel Aureliano, de Úrsula e de Melquíades. E acho que vai ser pra sempre assim.
Me empolguei e esqueci de falar do Interpol. O densidade do excelente Our Love to Admire, as melodias arrastadas e os vocais anasalados também climatizam Macondo, de certa forma, no calor da sesta e nos dias que se arrastam, no tempo que trava dentro da sala que guarda as tranqueiras do cigano. Não faz um trabalho tão bom quanto o Muse, contudo.
Se alguém, por acaso, resolver experimentar - ler o livro acompanhado da trilha sonora - por favor, me avise se estou viajando. Pra mim tem feito todo o sentido. Não consigo mais ler Cem Anos sem o Muse no play. Paciência.
É difícil dizer que essa foi a intenção dos caras do Muse. Pelo clipe dá pra ver que eles são uns palhaços. Hhahahah.
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October 26th, 2007 |