28.01

2009
2:37 am

Convenção de Genebra: regulando o irregulável

Postado em Outros

Guerra é uma parada sinistra. E isso eu só posso supor, porque nunca estive em uma. Mas as evidências de que a guerra não é legal são muitas. A principal se configura pelo princípio da guerra - é um bando de homens brigando com outro bando de homens em nome de um conceito tecnicamente vazio, o de pátria.

Apesar de todo mundo ser igual todo mundo, a gente inventa que é parte de algo representando por uma bandeira e que aquilo nos une num só espírito. Isso nos diferencia de outro grupo igualzinho o nosso, só que unido por outra alcunha que é representada por uma bandeira diferente (às vezes nem tão diferente assim).

Dentro dessa premissa, cria-se a obrigação de matar outras pessoas e de morrer porque você precisa defender o espírito daquele negócio que é representado por uma bandeira. Você mata e morre em nome da pátria, que não é nada, na verdade. Mas lá está você, bravo e faceiro, no front de batalha.

Lá é vida ou morte, rapá. A coisa é braba. Você passa o dia inteiro, por dias, meses, com um único objetivo: matar outras pessoas antes que elas possam matar você. Não é exatamente algo tranquilo. Certamente precisa de um ligeiro preparo psicológico.

É o caos, a absoluta irracionalidade. Não existe nada mais irracional do que juntar dois grupos para que eles se matem por um conceito que é frágil como o de pátria.

Logo, é idiotice tentar ‘racionalizar’ algo que é por definição tão primitivo. Você não pode regular o irregulável. Tentar estabelecer regras de conduta em um conflito é a maior prova da infinita estupidez do ser humano. É muito burro, parece hipócrita. Você permite que os soldados inimigos sejam mortos com tiros de metralhadoras, mas proíbe que eles sejam mortos com o uso de determinadas armas químicas? Se eu fosse um historiador de uma civilização futura e estivesse estudando nossos costumes, certamente isso seria algo de que eu gargalharia. Parece coisa de português. É como dizer a um assassino ‘você pode esfaquear essas pessoas porque elas se alistaram e estão cientes dessa possibilidade, mas não pode esfaquear aquelas outras.’

É que existe uma tal Convenção de Genebra, que instituiu uma espécie de lista do que você pode fazer e do que não pode fazer se for um país em guerra. Olha a versão atual da Convenção:

§1- Os países em guerra não podem utilizar armas químicas uns contra os outros.
§2- O uso de balas explosivas ou de material que cause sofrimento desnecessário nas vítimas é proibido.
§3- O bombardeio de balões com projéteis é proibido.
§4- Prisioneiros de guerra devem ser tratados com humanidade e protegidos da violência. Não podem ser espancados ou utilizados com interesses propagandísticos.
§5- Prisioneiros de guerra devem fornecer seu nome legítimo e patente. Aquele que mentir pode perder sua proteção.
§6- As nações devem identificar os mortos e feridos e informar seus familiares.
§7- É proibido matar alguém que tenha se rendido.
§8- Nas áreas de batalha, devem existir zonas demarcadas para onde os doentes e feridos possam ser transferidos e tratados.
§9- Proteção especial contra ataques será garantida aos hospitais civis marcados com a cruz vermelha.
§10- É permitida a passagem livre de medicamentos.
§11- Tripulantes de navios afundados pelo adversário devem ser resgatados e levados para terra firme com segurança.
§12- Qualquer exército que tome o controle de um país deve providenciar comida para seus habitantes locais.
§13- Ataques a cidades desprotegidas são proibidos.
§14- Submarinos não podem afundar navios comerciais ou de passageiros sem antes retirar seus passageiros e tripulação.
§15- Um prisioneiro pode ser visitado por um representante de seu país. Eles têm o direito de conversar reservadamente, sem a presença do inimigo.

Essa coisa tem as manhas de institucionalizar a guerra. Pior do que tentar colocar regras em algo que é o maior exemplo de incivilidade da nossa espécie, é oficializar isso em documentos assinados pelo mundo.

Você pode argumentar dizendo que muitas dessas regras visam a proteção dos civis. Mas ISSO NÃO EXISTE e é hipocrisia tentar criar um conjunto de regras nesse sentido. Civis morrem e morrerão na guerra. Muitos alvos ficam no meio das cidades, e hoje em dia as guerras acontecem no meio das pessoas. Fazer guerra é assumir o risco da morte de civis, e não adianta assinar um documento dizendo o contrário só pra pagar de politicamente correto.

Guerra é guerra. Não importa se 300 crianças vão morrer hoje de bomba ou no ano que vem de câncer gerado por fósforo branco. É tudo uma merda - ainda são 300 crianças morrendo. Proibir o uso dessas armas químicas que causam danos a longo prazo é compreensível, mas é patético no contexto, porque parece o mesmo que dizer ‘se for matar, mata agora. não use artifícios que causem a morte depois’. Se pode proibir as armas químicas, porque não pode proibir as outras, também? Humanidade portuga.

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9 comentários (Comente! Trackback)

  1. Sblargh
    28/01/09 | 4:05 am | #

    Eu entendo o seu ponto, mas o problema é que não fazer essas regras se equivaleria a fingir que guerra não existe.
    A maioria das guerras hoje, não são nem entre países, mas guerras civis.
    No Sri Lanka, no Congo, no Sudão; Ou são resistências contra limpezas étnicas ou são guerras separatistas.
    Não precisa de pátria pra dois grupos brigarem, qualquer diferença que você faz entre dois grupos em que um se sinta de algum modo oprimido pelo outro é suficiente pra deflagrar uma guerra.

    E a gente vê os Estados Unidos e Israel fazendo guerra e acha que essas convenções são uma besteira porque não impedem o sofrimento e a morte de civis, etc; mas dá uma olhada em guerras onde isso é de fato ignorado. De novo, Sri Lanka, Darfur, Congo… a coisa é ainda pior. É imensamente pior, nem se compara.
    É civil sendo atingido de propósito, é soldado inimigo sendo assassinado na frente de câmera de TV em meio a comemoração, é jornalista morrendo (recentemente morreu um no Sri Lanka e na carta que ele escreveu antes de morrer, ele dizia que previa que isso ia acontecer porque é isso que acontece com os jornalistas do Sri Lanka).

    É horrível pensar a noção de uma guerra civilizada, vendo o que acontece em Gaza é difícil de acreditar que aquela é uma guerra civilizada, mas em parte é porque a população de Gaza pode, depois da guerra, dar entrevista pra quem quiser ouvir relatando o que acontece com eles.
    O mundo fora da convenção de Genebra não pode nem isso.

    Responder

    Ana Freitas Reply:

    Tbm entendo o seu, e faz sentido. Mas vai dizer que não é algo estúpido? A gente sabe que nas guerras civis não tem regra, não tem nada. Ok, pelo menos com o tratado as organizações humanitárias podem cobrar o respeito dessas regras dos países. Mas na prática eles descumprem tudo, a gente sabe. Qual a diferença, no fim das contas? Eu só acho um esforço idiota tentar regular um negócio que é sanguinário, em que ninguém vai ficar ligando pro bem estar da população ou do soldado inimigo porque o objetivo é justamente fragilizá-los o máximo possível.
    Enfim. Bom que temos o tratado, mas é como eu disse: parece coisa de português.

    Responder

  1. Rubens
    28/01/09 | 12:10 pm | #

    Já existe regra pra fazer guerra???
    Essa eu juro que não entendi. Deve ser coisa de país rico e civilizado.

    Responder

    Ana Freitas Reply:

    Existe desde muito tempo… e quando eu me dei conta que tinham um monte de organizações dos direitos humanos defendendo o cumprimento do tratado (isso lá em Gaza), achei a coisa toda muito louca

    Responder

  1. Enrique
    28/01/09 | 12:17 pm | #

    Dá pra ler as reportagens sobre quaisquer guerras atuais e ir marcando quais os pontos da convenção estão sendo desobedecidos. É um acordo vazio, o máximo que se consegue são aqueles julgamentos de guerra: um país inteiro é trucidado, escolhem-se alguns militares pra servir de bode expiatório e voilá, justiça foi feita =(. O interessante do ponto de vista humanitário seria um acordo que desestimulasse os conflitos, talvez com multas e compensações pesadíssimas aos países envolvidos, talvez com boicotes e barreiras comerciais. Mas é ingenuidade sonhar que um acordo desses fosse obedecido ou mesmo assinado.

    Responder

    Ana Freitas Reply:

    Exato. Talvez mexendo no bolso a coisa funcionaria. Mas alguém assinaria um acordo desse? Nenhum país prometeria estar disposto a receber sanção comercial se se envolvesse em alguma guerra. A gente nunca sabe o dia de amanhã…

    Responder

  1. Eric Prieto
    29/01/09 | 4:33 am | #

    Bom, como você mesma disse, a guerra na sua propria definição já é ridícula, como qualquer divisão que nós fazemos entre nós mesmo é. O ser humano se dividir, rotular seus iguais[não-tão iguais] já é horrível, defender, mater por essa divisão então, mais ainda.

    Um mundo sem nada disso, era só um sonho que John Lennon cantava, não acho que pessoa alguma vá viver para ver um mundo onde todos nós vivamos unidos para o bem do planeta como um todo.

    Infelizmente, rumamos a nossa destruição, e com sorte, não carregaremos o planeta conosco. Opinião meio apocalíptica a minha, concordo, mas não vejo nada que me faça pensar o contrário.

    ~~~~
    Adoro seu blog, leio sempre que possível, quando tiver tempo, dê uma olhadinha no meu, to começando agora ^^/

    Responder

    Ana Freitas Reply:

    A gente não vive sem se matar, isso acontece desde sempre e vai acontecer pra sempre, até que nossa espécie seja extinta… com isso já me conformei.
    Passarei no seu blog assim que tiver um tempinho =)

    Responder

  1. Ana Freitas
    14/03/09 | 10:14 pm | #

    @azaghal, e eu me identifiquei muito qdo vc falou sobre a babaquice que é a convenção de genebra http://tinyurl.com/cryyp8

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